MLK: Algumas pessoas, não eu, estão preocupadas.
R: Com?
MLK: Vc.
R: Comigo?
MLK: Hm. Elas deveriam?
R: Não que eu saiba. As coisas andam na verdade, como é mesmo aquela expressão? "Tão bem que parece que a qualquer momento o Inferno vai abrir suas portas e engolir tudo transformando o que era algo bom e belo num mar de fogo e destruição".
MLK: ...
R: Ou algo assim.
MLK: E então, por que sumiu desta vez?
R: Porque é isso que eu faço. Eu sumo. Veja, Sr.King, depois de uns 5 anos convivendo comigo as pessoas, mesmas as mais burras... Oi, Herbert.
H: Olá.
R: Mesmos as mais burras, acabam percebendo e fazendo aquela pergunta.
P: Como é que eu te conheço faz um tempão e vc não envelheceu um só dia?
MLK: Ah, isso.
R: É. Isso.
H: E por que não diz a verdade?
R: Daqui a alguns anos não precisarei dizer nada. Tudo será explicado, mas até lá...
MLK: Até lá?
R: Algumas coisas não terão respostas.
H: "Um homem pode viver dias sem água"
MLK: "Semanas sem comida"
R (SORRINDO): "E uma vida inteira sem uma resposta"
Adeus, foi divertido!
terça-feira, 25 de agosto de 2009
terça-feira, 11 de agosto de 2009
O Quadro (para Elaine)
Eu te amo.
Foram essas as últimas palavras que ele havia escutado antes de ser abordado, espancado, seqüestrado e finalmente amarrado, pulsos e calcanhares, numa cadeira.
Mesmo com a capacidade de seus sentidos consideravelmente reduzida pela dor e confusão, concluiu que estava num quarto bem iluminado e que não estava sozinho. Poderia deduzir mais, mas decidiu que era melhor permanecer imóvel, fazer seus captores acharem que continuava desmaiado, ganhar tempo até pensar num modo de escapar.
Foi quando se lembrou que um pouco antes de apagar, escutou um grito.
O grito dela.
Precisou de todo seu auto-controle para permanecer quieto. Juntos haviam planejado sua “fuga”: as passagens já estavam em cima da televisão, as malas prontas. Deviam ter ido embora, mas ela quis escrever uma carta de despedida. Explicar para seu marido que não estavam levando um centavo dele e que não podia esperar um divórcio porque... bom, porque ela havia se casado com um maluco milionário que preferiria matar, a perdê-la.
− O recorde de ficar sem piscar os olhos é de quatro minutos e trinta e dois segundos. Essa informação poderia salvar a sua vida. Mas não vai.
A voz era fraca e o que ela havia dito era tão absurdo que por um momento ele acreditou que sua origem era de um programa de rádio. Mas vozes saídas de aparelhos não produziam mau hálito.
− O senhor é tão burro que está segurando a respiração desde que recobrou os sentidos. Acha que desmaiados não respiram? Desmaiados respiram. Mortos é que não. − a voz estava mais próxima, assim como o fedor de seu dono. − Posso dizer com exatidão o momento em que acordou. Fingir que continua desmaiado vai apenas adiar e não evitar os acontecimentos. Eu poderia... Ah, que se dane. Corte um dedo dele. O mindinho.
Ele abriu os olhos, e sem surpresa alguma, imediatamente se arrependeu. Estava mesmo num escritório, e sim, era bem iluminado. Amarrado não dava para saber o tamanho real do local, mas não parecia ser muito grande. Um típico escritório de um ricaço se já tinha visto algum em sua vida. E na sua frente, o próprio ricaço em pessoa. Sentado numa cadeira de rodas, cobertor de flanela vermelha nos joelhos e um sorriso cruel nos lábios secos.
Já tinha visto o velhote de relance umas duas vezes quando a porta da limusine abria o suficiente para buscar sua esposa. E atrás dele algo que poderia ser um armário em formato vagamente semelhante a um ser humano ou um ser humano com o tamanho e a aparência de um armário.
− É claro que a culpa foi minha. − o velho continuou seu pequeno monólogo. Aparentemente, havia esquecido a ameaça de amputação. − O que uma mulher jovem e linda como ela iria querer comigo? Mas o que é certo é certo, e algo precisa ser feito. Pode imaginar para um homem em minha posição o que... − nesse momento, um violento acesso de tosse quase o faz pular para fora de sua cadeira. − Desculpe. Disse... disse alguma coisa?
− Não a machuque. Por favor.
As palavras saíram com dificuldade. Em parte pelo medo, mas principalmente pelo estado físico em que ele se encontrava. Agora que não precisava mais ficar parado, podia sentir melhor os diversos tipos de dor que seu corpo sofria. Alguns dentes haviam desaparecido de sua boca. Costelas quebradas? Pode apostar. E o lado direito de seu rosto estava sem sensibilidade alguma. Provavelmente, isso era uma boa notícia. Talvez a única.
O velho pareceu ficar legitimamente admirado com o pedido. Fez sinal com seu indicador e o armário humano empurrou a cadeira para frente.
− Dou a minha palavra que ela está fora disso. O meu negócio agora é somente com o senhor e mais ninguém.
− Obrigado.
Mais um sinal e a cadeira voltou a posição inicial.
− Tive uma vida boa. Uma vida completa e boa. Mas não soube envelhecer. Não vi a graça de envelhecer e quis manter... coisas que não precisava e que não poderia mais aproveitar. − fez uma pausa e girou sozinho a cadeira, ficando quase totalmente de costas para sua platéia. − Olhe pra este lugar. Todos estes objetos... Olhe.
Armaduras, vasos grandes e feios, armas medievais e animais empalhados. Um pequeno museu que representava toda uma vida. Pela primeira vez, o jovem enxergava aquele velhote como um ser humano. Algo mais do que a caricatura de um homem rico casado com uma mulher ridiculamente mais jovem.
− Sabe o que são? Medalhas. Cada objeto tem uma história interessante por trás, mas o campeão... é este aqui. − nesse momento, ele apontou, esticando o braço, para uma grande cortina vermelha, obviamente num lugar de destaque. − É um quadro. Um quadro muito especial.
A reação dele e do seu guarda-costas era peculiar. Os dois estavam solenes, como se estivessem na presença de alguém, alguém importante, e não de um simples objeto. Quase como se estivessem com...
... medo?
− Trouxe comigo da África. Mais ou menos quando tinha a sua idade. Mas não estou sendo exato. Eu chamo de quadro, mas na verdade é um escudo. Um escudo feito com a pele de um homem muito, muito mau. − ele dá uma risadinha e tem um novo acesso de tosse. − Tão mau que seu espírito permaneceu preso nele.
− No quadro?
− Exatamente! Preso no quadro.
− Loucura.
Num movimento que surpreenderia qualquer um pela sua velocidade, o velho retira uma bengala com ponta de aço debaixo do seu cobertor e acerta na lateral da cabeça do seu prisioneiro, derrubando ele juntamente com a cadeira.
− Olhe o nível. Não estrague tudo agora sendo rude. É uma situação desagradável o suficiente. − olha para seu empregado. − Estou cansado. Mostre para ele, mostre agora.
O armário humano vai em direção ao jovem que se encolhe instintivamente. Como se ele e a cadeira não fossem mais pesados do que um lápis, são colocados em pé. E então, com mais facilidade ainda, o jovem é virado para trás, para o lado do escritório que ainda não conhecia.
E chora.
Na sua frente, amarrada numa cadeira idêntica a sua, está ela. Flashes de imagens dela sorrindo em diversos momentos do último e maravilhoso ano intercalados com aquela imagem grotesca. Seus olhos e sua boca abertos, na mais perfeita expressão de terror. E em seu tórax... um buraco. Grande o suficiente para poder ser transplantado nele uma televisão. Misericordiosamente nem uma única gota do sangue que da cintura para baixo estava cobrindo virtualmente cada centímetro de sua pele e suas roupas, não haviam maculado seu rosto. Mas havia algo de errado com seus cabelos. E então ele percebeu: não tinham mais aquele adorável tom dourado. Cada fio, o cabelo todo dela estava branco.
− Agora, preciso que preste atenção. É simples: o maldito quadro está vivo. Assim que olhar para ele, ele vai olhar de volta para você. E quando isso acontecer, será seu fim. Porque... está prestando atenção? − se vira e pergunta para seu ajudante. − Ele está prestando atenção?
O sujeito ergue novamente a cadeira, novamente voltando o jovem para seu captor e para a cortina vermelha.
− Compreendeu sua situação? Olhe para o quadro e ele o matará! Escutou bem? Não? Ah, outro inútil. São todos inúteis. Vamos embora. Isso é nojento.
O jovem continua chorando e mal percebe quando os dois se retiram deixando ele sozinho. Muito menos o momento quando o velho agarra o cordão amarelo preso na cortina e sai arrastando o pedaço de pano para fora do escritório, deixando agora o quadro totalmente exposto.
Mal a porta se fecha, o jovem pára de chorar e sua expressão se transforma.
Matar aquele miserável ou morrer tentando.
Esse era o único pensamento, o único objetivo e haveria apenas uma única oportunidade. Repassou o plano em sua mente buscando falhas, se havia era tarde demais, porque nesse momento ele se joga no chão e começa a golpear com todas as partes ainda móveis de seu corpo. As cordas não iriam ceder, eram grossas demais. Mas a cadeira era outra história: havia escutado como ela rangeu antes, quando foi lançada ao chão junto com ele da primeira vez.
Seus movimentos eram fortes, mas também eram desordenados e poucos estavam gerando qualquer efeito. Sem se importar com as conseqüências, urra audivelmente, torcendo os pulsos e os calcanhares. Quando as cordas começam a cortar sua carne, ele apenas ri.
Continua assim até que suas forças acabam e então percebe... seu sangue havia umidificado as cordas e elas estavam finalmente cedendo um pouco. Podia ser ilusão ou um objetivo impossível, mas seus movimentos finais iriam fazer aquelas malditas cordas cederem ou ele estava preparado a cerrar seus pulsos até os ossos aparecerem.
Não precisou tanto e mal pode acreditar quando finalmente soltou uma de suas mãos. Logo estava totalmente livre da cadeira e pronto para escapar dali.
Foi quando percebeu que o quadro estava olhando para ele.
O quadro, o escudo, devia ter quase dois metros de comprimento. Se era ou não feito de pele humana, a textura definitivamente tentava passar essa impressão. A moldura era uma bagunça de grandes penas negras amarradas com cipó. A pintura em si era escura. Basicamente usava apenas duas cores: verde escuro e preto. A imagem era definitivamente de uma floresta com árvores gigantescas que cobriam o céu com seus galhos e o chão com suas raízes. E bem ao fundo a silhueta inconfundível de um ser humano. Pela posição e contorno, parecia que estava de costas com a cabeça virada para trás e era bem pequeno pelas proporções, talvez uma criança.
− Louco. Velho louco. − o jovem diz, deixando o quadro para trás e se concentrando em escolher algo que pudesse ajudar em sua fuga. Termina escolhendo uma espada que estava presa junto com um machado e dá um grito de alegria ao ver que a lâmina estava afiada.
Checa rapidamente as janelas e as portas e quando confirma que elas estão todas trancadas e feitas com madeira grossa e placas de metal, quase entra em pânico novamente, mas a súbita visão do cadáver de sua amante o acalma. Tira sua camisa e o cobre da melhor maneira possível. Teria que...
A imagem do quadro havia mudado.
O menino (sim, agora ele podia ver claramente) estava de frente e mais perto.
“Não era possível”, ele pensa, e então esfrega seus olhos com as costas de sua mão.
O menino estava agora visível somente do peito para cima. Bem mais perto dele. E sorrindo.
Sabendo o que o gesto podia custar, mas precisando confirmar que não estava enlouquecendo, que já havia enlouquecido, ele se obriga a fechar e abrir os olhos novamente.
O rosto do menino, da coisa que se parecia um menino, estava agora cobrindo toda a extensão do quadro. Sua boca estava aberta num ângulo impossível (para um humano), mostrando uma fileira de dentes amarelos e afiados como navalhas.
O jovem desiste de tentar entender a situação e instintivamente corre para longe do quadro. Com sua espada começa a golpear a porta, arrancando pequenas e inúteis lascas. Um último golpe faz a espada escapar de suas mãos e voar para trás. Sem pensar, ele se vira e a acha.
Erguendo os olhos para o quadro.
A tela estava vazia. O menino e a floresta não estavam mais em lugar algum da pintura. Apenas o couro esticado do homem mau.
Ele senta no chão e começa a rir.
E então começa a gritar.
A porta do escritório se abre e o ajudante do velho entra cautelosamente. Ele olha primeiro para o cadáver ainda coberto pela camisa e depois quase tropeça no corpo do jovem deitado de bruços no chão.
− Cubra o quadro! − a voz do velho do lado de fora ordena. − Faça isso rápido e não olhe para ele.
O ajudante, usando a mesma cortina vermelha, que trouxe com ele, tomando cuidado para não olhar, cobre o quadro, sai e volta com o velho.
− Onde ele está?
− No chão senhor. Não entendo, ele est... − não termina a frase. Do seu peito surge a lâmina de uma espada e ele cai morto imediatamente.
O velhote desmaia ao ver essa cena e quando acorda dá um grito horrendo ao perceber o que está olhando. O quadro. Novamente com a floresta e a sinistra silhueta de costas olhando para trás. Ele instintivamente fecha seus olhos e começa a rezar.
− Deus, tenha piedade de mim. Deus, tenha...
A voz ao seu lado o faz calar. Ele reconhece a voz do seu ex-prisioneiro.
− É claro que a culpa foi minha. E vou pagar pro resto da minha vida. Mas o que é certo é certo, e algo precisa ser feito...
− Meu jovem, posso entender a sua raiva. − o velho, ainda com os olhos fechados tenta negociar, ao mesmo tempo que confirma que está imobilizado por cordas. − Mas agora pode fazer algo muito estúpido e criminoso ou poderá sair daqui um homem muito rico.
− Ninguém vai sair daqui. Descobri um modo de vencer o quadro, sabe? Um modo prático e doloroso. Mas não pretendo sair daqui. Apenas quero ficar com você, quando ele finalmente estiver livre. Deverá ser uma visão magnífica... Pena que só você poderá aproveitar.
O jovem ergue a espada que estava segurando, e a crava na coxa do velho que grita e abre os olhos, olhando diretamente para o quadro.
Ele sorri. Afinal sua mira foi excelente considerando que seus olhos foram recém arrancados por si próprio e de forma extremamente rudimentar. Não ia mesmo poder apreciar o espetáculo, mas iria se contentar com os gritos.
Foram essas as últimas palavras que ele havia escutado antes de ser abordado, espancado, seqüestrado e finalmente amarrado, pulsos e calcanhares, numa cadeira.
Mesmo com a capacidade de seus sentidos consideravelmente reduzida pela dor e confusão, concluiu que estava num quarto bem iluminado e que não estava sozinho. Poderia deduzir mais, mas decidiu que era melhor permanecer imóvel, fazer seus captores acharem que continuava desmaiado, ganhar tempo até pensar num modo de escapar.
Foi quando se lembrou que um pouco antes de apagar, escutou um grito.
O grito dela.
Precisou de todo seu auto-controle para permanecer quieto. Juntos haviam planejado sua “fuga”: as passagens já estavam em cima da televisão, as malas prontas. Deviam ter ido embora, mas ela quis escrever uma carta de despedida. Explicar para seu marido que não estavam levando um centavo dele e que não podia esperar um divórcio porque... bom, porque ela havia se casado com um maluco milionário que preferiria matar, a perdê-la.
− O recorde de ficar sem piscar os olhos é de quatro minutos e trinta e dois segundos. Essa informação poderia salvar a sua vida. Mas não vai.
A voz era fraca e o que ela havia dito era tão absurdo que por um momento ele acreditou que sua origem era de um programa de rádio. Mas vozes saídas de aparelhos não produziam mau hálito.
− O senhor é tão burro que está segurando a respiração desde que recobrou os sentidos. Acha que desmaiados não respiram? Desmaiados respiram. Mortos é que não. − a voz estava mais próxima, assim como o fedor de seu dono. − Posso dizer com exatidão o momento em que acordou. Fingir que continua desmaiado vai apenas adiar e não evitar os acontecimentos. Eu poderia... Ah, que se dane. Corte um dedo dele. O mindinho.
Ele abriu os olhos, e sem surpresa alguma, imediatamente se arrependeu. Estava mesmo num escritório, e sim, era bem iluminado. Amarrado não dava para saber o tamanho real do local, mas não parecia ser muito grande. Um típico escritório de um ricaço se já tinha visto algum em sua vida. E na sua frente, o próprio ricaço em pessoa. Sentado numa cadeira de rodas, cobertor de flanela vermelha nos joelhos e um sorriso cruel nos lábios secos.
Já tinha visto o velhote de relance umas duas vezes quando a porta da limusine abria o suficiente para buscar sua esposa. E atrás dele algo que poderia ser um armário em formato vagamente semelhante a um ser humano ou um ser humano com o tamanho e a aparência de um armário.
− É claro que a culpa foi minha. − o velho continuou seu pequeno monólogo. Aparentemente, havia esquecido a ameaça de amputação. − O que uma mulher jovem e linda como ela iria querer comigo? Mas o que é certo é certo, e algo precisa ser feito. Pode imaginar para um homem em minha posição o que... − nesse momento, um violento acesso de tosse quase o faz pular para fora de sua cadeira. − Desculpe. Disse... disse alguma coisa?
− Não a machuque. Por favor.
As palavras saíram com dificuldade. Em parte pelo medo, mas principalmente pelo estado físico em que ele se encontrava. Agora que não precisava mais ficar parado, podia sentir melhor os diversos tipos de dor que seu corpo sofria. Alguns dentes haviam desaparecido de sua boca. Costelas quebradas? Pode apostar. E o lado direito de seu rosto estava sem sensibilidade alguma. Provavelmente, isso era uma boa notícia. Talvez a única.
O velho pareceu ficar legitimamente admirado com o pedido. Fez sinal com seu indicador e o armário humano empurrou a cadeira para frente.
− Dou a minha palavra que ela está fora disso. O meu negócio agora é somente com o senhor e mais ninguém.
− Obrigado.
Mais um sinal e a cadeira voltou a posição inicial.
− Tive uma vida boa. Uma vida completa e boa. Mas não soube envelhecer. Não vi a graça de envelhecer e quis manter... coisas que não precisava e que não poderia mais aproveitar. − fez uma pausa e girou sozinho a cadeira, ficando quase totalmente de costas para sua platéia. − Olhe pra este lugar. Todos estes objetos... Olhe.
Armaduras, vasos grandes e feios, armas medievais e animais empalhados. Um pequeno museu que representava toda uma vida. Pela primeira vez, o jovem enxergava aquele velhote como um ser humano. Algo mais do que a caricatura de um homem rico casado com uma mulher ridiculamente mais jovem.
− Sabe o que são? Medalhas. Cada objeto tem uma história interessante por trás, mas o campeão... é este aqui. − nesse momento, ele apontou, esticando o braço, para uma grande cortina vermelha, obviamente num lugar de destaque. − É um quadro. Um quadro muito especial.
A reação dele e do seu guarda-costas era peculiar. Os dois estavam solenes, como se estivessem na presença de alguém, alguém importante, e não de um simples objeto. Quase como se estivessem com...
... medo?
− Trouxe comigo da África. Mais ou menos quando tinha a sua idade. Mas não estou sendo exato. Eu chamo de quadro, mas na verdade é um escudo. Um escudo feito com a pele de um homem muito, muito mau. − ele dá uma risadinha e tem um novo acesso de tosse. − Tão mau que seu espírito permaneceu preso nele.
− No quadro?
− Exatamente! Preso no quadro.
− Loucura.
Num movimento que surpreenderia qualquer um pela sua velocidade, o velho retira uma bengala com ponta de aço debaixo do seu cobertor e acerta na lateral da cabeça do seu prisioneiro, derrubando ele juntamente com a cadeira.
− Olhe o nível. Não estrague tudo agora sendo rude. É uma situação desagradável o suficiente. − olha para seu empregado. − Estou cansado. Mostre para ele, mostre agora.
O armário humano vai em direção ao jovem que se encolhe instintivamente. Como se ele e a cadeira não fossem mais pesados do que um lápis, são colocados em pé. E então, com mais facilidade ainda, o jovem é virado para trás, para o lado do escritório que ainda não conhecia.
E chora.
Na sua frente, amarrada numa cadeira idêntica a sua, está ela. Flashes de imagens dela sorrindo em diversos momentos do último e maravilhoso ano intercalados com aquela imagem grotesca. Seus olhos e sua boca abertos, na mais perfeita expressão de terror. E em seu tórax... um buraco. Grande o suficiente para poder ser transplantado nele uma televisão. Misericordiosamente nem uma única gota do sangue que da cintura para baixo estava cobrindo virtualmente cada centímetro de sua pele e suas roupas, não haviam maculado seu rosto. Mas havia algo de errado com seus cabelos. E então ele percebeu: não tinham mais aquele adorável tom dourado. Cada fio, o cabelo todo dela estava branco.
− Agora, preciso que preste atenção. É simples: o maldito quadro está vivo. Assim que olhar para ele, ele vai olhar de volta para você. E quando isso acontecer, será seu fim. Porque... está prestando atenção? − se vira e pergunta para seu ajudante. − Ele está prestando atenção?
O sujeito ergue novamente a cadeira, novamente voltando o jovem para seu captor e para a cortina vermelha.
− Compreendeu sua situação? Olhe para o quadro e ele o matará! Escutou bem? Não? Ah, outro inútil. São todos inúteis. Vamos embora. Isso é nojento.
O jovem continua chorando e mal percebe quando os dois se retiram deixando ele sozinho. Muito menos o momento quando o velho agarra o cordão amarelo preso na cortina e sai arrastando o pedaço de pano para fora do escritório, deixando agora o quadro totalmente exposto.
Mal a porta se fecha, o jovem pára de chorar e sua expressão se transforma.
Matar aquele miserável ou morrer tentando.
Esse era o único pensamento, o único objetivo e haveria apenas uma única oportunidade. Repassou o plano em sua mente buscando falhas, se havia era tarde demais, porque nesse momento ele se joga no chão e começa a golpear com todas as partes ainda móveis de seu corpo. As cordas não iriam ceder, eram grossas demais. Mas a cadeira era outra história: havia escutado como ela rangeu antes, quando foi lançada ao chão junto com ele da primeira vez.
Seus movimentos eram fortes, mas também eram desordenados e poucos estavam gerando qualquer efeito. Sem se importar com as conseqüências, urra audivelmente, torcendo os pulsos e os calcanhares. Quando as cordas começam a cortar sua carne, ele apenas ri.
Continua assim até que suas forças acabam e então percebe... seu sangue havia umidificado as cordas e elas estavam finalmente cedendo um pouco. Podia ser ilusão ou um objetivo impossível, mas seus movimentos finais iriam fazer aquelas malditas cordas cederem ou ele estava preparado a cerrar seus pulsos até os ossos aparecerem.
Não precisou tanto e mal pode acreditar quando finalmente soltou uma de suas mãos. Logo estava totalmente livre da cadeira e pronto para escapar dali.
Foi quando percebeu que o quadro estava olhando para ele.
O quadro, o escudo, devia ter quase dois metros de comprimento. Se era ou não feito de pele humana, a textura definitivamente tentava passar essa impressão. A moldura era uma bagunça de grandes penas negras amarradas com cipó. A pintura em si era escura. Basicamente usava apenas duas cores: verde escuro e preto. A imagem era definitivamente de uma floresta com árvores gigantescas que cobriam o céu com seus galhos e o chão com suas raízes. E bem ao fundo a silhueta inconfundível de um ser humano. Pela posição e contorno, parecia que estava de costas com a cabeça virada para trás e era bem pequeno pelas proporções, talvez uma criança.
− Louco. Velho louco. − o jovem diz, deixando o quadro para trás e se concentrando em escolher algo que pudesse ajudar em sua fuga. Termina escolhendo uma espada que estava presa junto com um machado e dá um grito de alegria ao ver que a lâmina estava afiada.
Checa rapidamente as janelas e as portas e quando confirma que elas estão todas trancadas e feitas com madeira grossa e placas de metal, quase entra em pânico novamente, mas a súbita visão do cadáver de sua amante o acalma. Tira sua camisa e o cobre da melhor maneira possível. Teria que...
A imagem do quadro havia mudado.
O menino (sim, agora ele podia ver claramente) estava de frente e mais perto.
“Não era possível”, ele pensa, e então esfrega seus olhos com as costas de sua mão.
O menino estava agora visível somente do peito para cima. Bem mais perto dele. E sorrindo.
Sabendo o que o gesto podia custar, mas precisando confirmar que não estava enlouquecendo, que já havia enlouquecido, ele se obriga a fechar e abrir os olhos novamente.
O rosto do menino, da coisa que se parecia um menino, estava agora cobrindo toda a extensão do quadro. Sua boca estava aberta num ângulo impossível (para um humano), mostrando uma fileira de dentes amarelos e afiados como navalhas.
O jovem desiste de tentar entender a situação e instintivamente corre para longe do quadro. Com sua espada começa a golpear a porta, arrancando pequenas e inúteis lascas. Um último golpe faz a espada escapar de suas mãos e voar para trás. Sem pensar, ele se vira e a acha.
Erguendo os olhos para o quadro.
A tela estava vazia. O menino e a floresta não estavam mais em lugar algum da pintura. Apenas o couro esticado do homem mau.
Ele senta no chão e começa a rir.
E então começa a gritar.
A porta do escritório se abre e o ajudante do velho entra cautelosamente. Ele olha primeiro para o cadáver ainda coberto pela camisa e depois quase tropeça no corpo do jovem deitado de bruços no chão.
− Cubra o quadro! − a voz do velho do lado de fora ordena. − Faça isso rápido e não olhe para ele.
O ajudante, usando a mesma cortina vermelha, que trouxe com ele, tomando cuidado para não olhar, cobre o quadro, sai e volta com o velho.
− Onde ele está?
− No chão senhor. Não entendo, ele est... − não termina a frase. Do seu peito surge a lâmina de uma espada e ele cai morto imediatamente.
O velhote desmaia ao ver essa cena e quando acorda dá um grito horrendo ao perceber o que está olhando. O quadro. Novamente com a floresta e a sinistra silhueta de costas olhando para trás. Ele instintivamente fecha seus olhos e começa a rezar.
− Deus, tenha piedade de mim. Deus, tenha...
A voz ao seu lado o faz calar. Ele reconhece a voz do seu ex-prisioneiro.
− É claro que a culpa foi minha. E vou pagar pro resto da minha vida. Mas o que é certo é certo, e algo precisa ser feito...
− Meu jovem, posso entender a sua raiva. − o velho, ainda com os olhos fechados tenta negociar, ao mesmo tempo que confirma que está imobilizado por cordas. − Mas agora pode fazer algo muito estúpido e criminoso ou poderá sair daqui um homem muito rico.
− Ninguém vai sair daqui. Descobri um modo de vencer o quadro, sabe? Um modo prático e doloroso. Mas não pretendo sair daqui. Apenas quero ficar com você, quando ele finalmente estiver livre. Deverá ser uma visão magnífica... Pena que só você poderá aproveitar.
O jovem ergue a espada que estava segurando, e a crava na coxa do velho que grita e abre os olhos, olhando diretamente para o quadro.
Ele sorri. Afinal sua mira foi excelente considerando que seus olhos foram recém arrancados por si próprio e de forma extremamente rudimentar. Não ia mesmo poder apreciar o espetáculo, mas iria se contentar com os gritos.
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